quinta-feira, 18 de agosto de 2011

O jardim de caminhos que se bifurcam, de Jorge Luís Borges, 1941


(a Victoria Ocampo)

Na pagina 22 da Historia da Guerra Européia, de Liddell Hart, lê-se que uma ofensiva de treze divisões britânicas (apoiadas por mil e quatrocentas peças de artilharia) contra a linha de Serre-Moutauban tinha sido planejada para o dia vinte e quatro de Julho de 1916 e teve que ser adiada até a manhã do dia vinte e nove. As chuvas torrenciais (anota o Cap. Liddell Hart) provocaram essa delonga – nada significativo, por certo. A seguinte declaração, ditada, relida e assinada pelo Dr. Yu Tusun, antigo catedrático de inglês na Hochschule de Tsingatao, projecta uma insuspeitada luz sobre o caso. Faltam as duas páginas iniciais.
“… e pendurei o fone. Imediatamente após, reconheci a voz que havia respondido em alemão. Era a do Cap. Richard Madden. Madden no apartamento de Viktor Runeberg, significava o fim de nossos afãs e – mas isso parecia muito secundário, ou devia parecer-me – também de nossas vidas. Queria dizer que Runenberg tinha sido detido, ou assassinado?* Antes que o sol desse dia declinasse, eu sofreria a mesma sorte. Madden era implacável . Ou melhor, estava obrigado a ser implacável. Irlandês às ordens da Inglaterra, homem acusado de tibieza e talvez de traição, como não abraçar e agradecer esse milagroso favor: a descoberta, a captura, quem sabe a morte, de dois agentes do Império Alemão? Subi ao meu quarto; absurdamente fechei a porta a chave e atirei-me de costas na estreita cama de ferro. Na janela mostravam-se os telhados de sempre e o sol nublado das seis. Pareceu-me incrível que esse dia sem premonições ou símbolos fosse o de minha morte implacável. Apesar de meu pai haver morrido, apesar de ter sido um menino num simétrico jardim de Hai Feng, eu, agora, ia morrer? Depois refleti que todas as coisas nos acontecem precisamente, precisamente agora. Século de século e apenas no presente ocorrem os fatos; inumeráveis homens no ar, na terra e mar, e tudo o que realmente sucede; sucede a mim… A quase intolerável lembrança do rosto acavalado de Madden aboliu essas divagações. Em meio ao meu ódio e meu terror (no momento não me importa falar de terror: agora que enganei Richard Madden, agora que minha garganta anseia pela corda) pensei que esse guerreiro tumultuoso e sem dúvida feliz não suspeitava que eu possuísse o Segredo.  O nome do exato  lugar do novo parque britânico e artilharia sobre o Ancre. Um pássaro riscou o céu cinza e cegamente tomei-o por um aeroplano e a esse aeroplano por muitos (no céu francês) aniquilando o parque de artilharia com bombas verticais. Se minha boca; antes que a desfizesse um balanço, pudesse gritar esse nome de modo que o escutassem na Alemanha… Minha voz era muito fraca. Como fazê-la chegar ao ouvido do Chefe? Ao  ouvido daquele homem doente e odioso, que nada sabia de Runeberg e de mim a não ser que estávamos em Staffordshire e inutilmente esperava noticias nossas em seu árido escritório de Berlim, examinando infinitamente jornais… Disse em voz alta: Devo fugir. Incorporei-me sem barulho, numa oca perfeição de silencio, como se Madden já estivesse espreitando. Algo – talvez a mera ostentação de provar que meus recursos eram nulos – fez me revistar meus bolsos. Encontrei o que sabia que ia encontrar. O relógio norte-americano, a corrente de níquel e a moeda quadrangular, o chaveiro com as comprometedoras chaves inúteis do apartamento de Runeberg, a caderneta, uma carta que resolvi destruir imediatamente (e que não destruí), uma coroa, dois xelins e uns pennies, o lápis vermelho-azul, o lenço, o revólver com uma bala. Absurdamente o empunhei e sopesei para dar-me coragem. Pensei vagamente que um tiro de pistola pode ser ouvido bem longe. Em dez minutos meu plano estava maduro. O guia telefónico forneceu-me o nome da única pessoa capaz de transmitir a noticia: vivia num subúrbio de Fenton, a menos de meia hora de trem.
Sou um homem covarde. Agora o digo, agora que levei a termo um plano que ninguém deixará de qualificar de arriscado. Sei que foi terrível sua execução. Não o fiz pela Alemanha, não. Pouco me importa um país bárbaro, que me obrigou à abjecção de ser um espião.  Ademais, eu sei de um homem da Inglaterra – homem modesto – que para mim não representa menos que Goethe. Não falei com ele mais de uma hora, mas durante uma hora foi Goethe… Eu fiz isso, porque sentia que o Chefe temia um pouco aos de minha raça – aos inumeráveis antepassados que em mim confluem. Eu queria provar-lhe que um amarelo podia salvar exércitos. De resto, devia fugir do capitão. Suas mãos e sua voz podiam bater-me à porta a qualquer momento. Vesti-me sem ruído, disse-me adeus no espelho, desci, esquadrinhei a rua tranquila  e sai. A estação não ficava longe de casa, mas achei preferível tomar um carro. Argui que assim corria menos perigo de ser reconhecido; o fato é que na rua deserta eu me sentia visível e vulnerável, infinitamente. Lembro-me de ter dito ao chofer que se detivesse um pouco antes da entrada central. Desci com lentidão voluntária e quase penosa; ia à aldeia de Ashgrove, mas retirei uma passagem para uma estação mais longe. O trem saia dentro de pouquíssimo minutos, às oito e cinquenta. Apressei-me; o próximo partia às nove e meia. Não havia quase ninguém na plataforma. Percorri os vagões: recordo uns lavradores, uma mulher de luto, um jovem que lia fervoroso os Anais de Tácito, um soldado ferido e feliz. Os vagões, por fim, arrancaram. Um homem que reconheci correu em vão até o limite da plataforma. Era o Cap Richard Madden. Aniquiliado, trêmulo, , encolhi-me noutra ponta do assento, longe da temida janela.
Dessa aniquilação passei a uma felicidade quase abjecta. Disse-me que já estava empenhada minha luta e que ganhara o primeiro assalto, ao iludir, ainda que por quarenta minutos, ainda que por favor da sorte, o ataque de meu adversário. Argui que essa vitória mínima prefigurava a vitória total. Argui que não era mínima, já que sem essa diferença preciosa que o horário dos trens me oferecia, eu estaria no cárcere ou morto. Argui (não menos sofisticadamente) que minha felicidade covarde provava que eu era homem capaz de levar a bom termo a aventura. Dessa fraqueza tirei forças que não me abandonaram. Prevejo que o homem se resignará diariamente a empresas mais atrozes; breve só haverá guerreiros e bandoleiros, dou-lhes este conselho: O executor de uma empresa atroz deve imaginar que já a cumpriu, deve impor-se um futuro que seja irrevogável com o passado.  Assim procedi, enquanto meus olhos de homem já morto registravam o fluir daquele dia que era talvez o último, e a difusão da noite. O trem corria como doçura, entre freixos. Deteve-se, quase ao meio do campo. Ninguém gritou  o nome da estação. Ashgrove? – perguntei a uns meninos na plataforma. Ashgrove, responderam. Desci.
Uma lâmpada aclarava a plataforma, mas o rostos dos meninos ficavam na zona da sombra. Um me perguntou: O senhor vai à casa do Dr. Stephen Albert? Sem aguardar resposta, outro disse: A casa fica longe daqui, mas o senhor não se perderá se tomar esse caminho à esquerda e se em cada encruzilhada do caminho dobrar à esquerda.  Atirei-lhes uma moeda (a última), desci uns degraus de pedra e entrei no solitário caminho. Este, lentamente, descia. Era de terra elementar, confundiam-se no alto os ramos, a lua baixa e circular parecia acompanhar-me.
Por um instante, pensei que Richard Madden havia de algum modo penetrado  em minhas desesperadas intenções. Logo compreendi que isso era impossível. O conselho de sempre dobrar à esquerda lembrou-se que tal era o procedimento comum para descobrir o pátio central de certos labirintos. Entendo alguma coisa de labirintos: não é em vão que sou bisneto daquele Ts’ui Pen, que foi governador de Yunnan e que renunciou ao poder temporal para escrever um romance que fosse ainda mais populoso que o Hung Lu Meng e para edificar um labirinto em que todos os homens se perdessem. Treze anos dedicou a esses heterogêneos  trabalhos, porém a mão de um forasteiro o assassinou e seu romance era insensato e ninguém encontrou o labirinto. Sob árvores inglesas meditei nesse labirinto perdido: imaginei-o inviolado e perfeito no cume secreto de uma montanha, imaginei-o disfarçado por arrozais ou debaixo d’água, imaginei-o infinito, não já de quiosques oitavados e de caminhos que voltam, mas sim de rios e províncias e reinos… Pensei num labirinto de labirintos, num sinuoso labirinto crescente que abarcasse o passado e o futuro e que envolvesse, de algum modo, os astros. Absorto nessas imagens ilusórias, esqueci meu destino de perseguido. Senti-me, por um tempo indeterminado, conhecedor abstracto do mundo. O vago e vivo campo, a lua, os restos da tarde, agiram sobre mim; também o declive que eliminava qualquer possibilidade de cansaço. A tarde era íntima, infinita. O caminho descia e se bifurcava, entre várzeas indistintas. Uma música aguda e como que silábica aproximava-se e afastava-se no vaivém do vento, turvada de folhas e de distância. Pensei que um homem pode ser inimigo de outros homens, de outros momentos de outros homens, mas não de um país: não de vaga-lumes, palavras, jardins, cursos de água, poentes. Cheguei, assim, a um alto portão enferrujado. Entre as grades de ferro decifrei uma alameda e uma espécie de pavilhão. Compreendi, logo. Duas coisas, a primeira trivial, a segunda quase incrível: a música vinda do pavilhão, a música era chinesa. Por isso eu a aceitara com plenitude, sem prestar-lhe atenção. Não recordo se havia uma sineta ou uma campainha ou se chamei batendo palmas. A contínua vibração da música prosseguiu.
Mas do fundo da aconchegante casa uma lanterna se aproximava: uma lanterna que os troncos riscavam e por instantes anulavam, uma lanterna de papel, que tinha  a forma dos tambores e a cor da lua. Um homem alto a trazia. Não vi seu rosto, porque a luz me cegava. Abriu o portão e disse lentamente no meu idioma:
_ Vejo que o piedoso Hsi P’eng se empenha em corrigir minha solidão. O senhor sem dúvida desejará ver o jardim?
Reconheci o nome de um de nossos cônsules e repeti desconcertado:
_ O jardim?
_ O jardim de caminhos que se bifurcam.
Alguma coisa se agitou em minha lembrança e pronunciei com incompreensível segurança:
_ O jardim de meu antepassado Ts’uui Pen.
_ Seu antepassado? Seu ilustre antepassado? Avante.
O húmido caminho ziguezagueava como os de minha infância. Chegamos a uma biblioteca de livros orientais e ocidentais. Reconheci, encadernados em seda amarela, alguns volumes manuscritos da Enciclopédia Perdida que o Terceiro Imperador da Dinastia Luminosa orientou e que nunca foi publicada. O disco do gramofone girava junto a um Fénix de bronze. Lembro-me também de um jarrão rosa da família e outro, anterior de muitos séculos, dessa cor azul que nossos artífices copiaram dos oleiros da Pérsia…
Stephen Albert observava-me, sorridente. Era (já o disse) muito alto, de feições afiladas, de olhos cinzentos e barba cinzenta. algo de sacerdote havia nele e também de marítimo; depois me referiu que fora missionário em Tientsin ‘antes de aspirar a sinólogo.
Sentamo-nos; eu num comprido e baixo divã; ele de costas à janela e a um alto relógio circular. Calculei que meu perseguidor Richard Madden, antes de uma hora não chegaria. Minha determinação irrevogável podia esperar.
_Assombroso destino o de Ts’ui Pen – disse Stephen albert. – Governador de sua província natal, douto em astronomia, em astrologia e na interpretação infatigável dos livros canônicos, enxadrista, famoso poeta e calígrafo: abandonou tudo para compor um livro e um labirinto. Renunciou aos prazeres da opressão, da justiça, do numeroso leito, dos banquetes e ainda da erudição e enclausurou-se durante treze anos no Pavilhão Límpida Solidão. Ao morrer, os herdeiros só encontraram manuscritos caóticos. A família, como talvez o senhor não ignore, quis adjudicá-los ao fogo; mas seu testamenteiro – um monge taoísta ou budista – insistiu na publicação.
_ Os do sangue de Ts’sui Pen – respondi – continuamos execrando a esse monge. Essa publicação foi insensata. O livro é um acervo indeciso de apontamentos contraditórios. Examinei-o certa vez: no terceiro capítulo morre o herói, no quarto está vivo. Quanto à outra empresa de Ts’ui Pen, ao seu Labirinto…
_ Aqui está o Labirinto – disse indicando-me uma alta escrivaninha laqueada.
_ Um labirinto de marfim! – exclamei. – Um labirinto mínimo…
_ Um labirinto de símbolos – corrigiu. – Um invisível labirinto de tempo. A mim, bárbaro inglês, foi-me dado revelar esse diáfano mistério. Ao fim de mais de cem anos, os pormenores são irrecuperáveis, mas não é  difícil conjecturar o que sucedeu.  Ts’sui Pen teria dito uma vez: Retiro-me para escrever um livro. E outra: Retiro-me para construir um labirinto. Todos imaginaram duas obras; ninguém pensou que livro e labirinto eram um só objecto. O Pavilhão da Límpida Solidão erguia-se no centro de um jardim talvez intrincado; essa circunstância pode ter sugerido aos homens um labirinto físico. Ts’sui Pen morreu; ninguém, nas dilatadas terras que foram suas, achou o labirinto. Duas situações trouxeram-se a exacta solução do problema. Uma: a curiosa lenda de que Ts’suiu Pen se propusera um labirinto que fosse estritamente infinito. Outra: um fragmento de uma carta que descobri.
Albert levantou-se. Volveu-me, por uns instantes, as costas; abriu a gaveta da áurea e enegrecida escrivaninha. Voltou com um papel antes carmesim; agora rosado e ténue e quadriculado. Era justo o renome caligráfico de Ts’sui Pen. Li com incompreensão e fervor estas palavras que com minucioso pincel redigira um homem de meu sangue: Deixo aos vários futuros (não a todos) meu jardim de caminhos que se bifurcam. Devolvi em silêncio a folha. Albert continuou:
_ Antes de exumar esta carta, eu tinha me perguntado de que maneira um livro pode ser infinito. Não conjecturei outro processo que o de um volume cíclico, circular. Um volume cuja última página fosse idêntica à primeira, com possibilidade de continuar indefinidamente. Recordei também aquela noite que está no centro das Mil e Uma Noites, quando a Rainha Scheherazade (por uma mágica distracção do copista) põe-se a referi textualmente a história das ’1001 Noites’, com risco de chegar outra vez à noite na qual está fazendo o relato, e assim até o infinito. Imaginei também uma obra platónica, hereditária, transmitida de pai para filho, na qual cada novo indivíduo aditasse um capítulo ou corrigisse com piedoso cuidado a página dos antepassados.  Essas conjecturas distraíram-me; mas nenhuma parecia corresponder, ainda que de um modo distante, aos contraditórios capítulos de Ts’sui Pen. Nessa perplexidade, remeteram-me de Oxford o manuscrito que o senhor examinou. Detive-me, como é natural, na frase: Deixo aos vários futuros (não a todos) meu jardim de caminhos que se bifurcam. Quase de imediato compreendi: o jardim de caminhos que se bifurcam era o romance caótico; a frase “vários futuros (não a todos)” sugeriu-me a imagem da bifurcação no tempo, não no espaço. A releitura geral da obra confirmou essa teoria. Em todas as ficções, cada vez que um homem se defronta com diversas alternativas, opta por uma e elimina as outras; na do quase inextricável Ts’sui Pen, opta – simultaneamente – por todas. Cria, assim, diversos futuros, diversos tempos, que também proliferam e se bifurcam. Daí as contradições do romance. Fang, digamos, tem um segredo; um desconhecido chama à sua porta; Fang pode matar o intruso, o intruso pode matar Fang, ambos podem salvar-se, ambos podem morrer, etc. Na obra de Ts’sui Pen, todos os desfechos ocorrem; cada um é o ponto de partida de outras bifurcações. Às vezes, os caminhos desse labirinto convergem: por exemplo, o senhor chega a esta casa, mas num dos passados possíveis o senhor é meu inimigo, em outro meu amigo. Se o senhor se resignar à minha pronúncia incurável, leremos algumas páginas.
Seu rosto, no vívido círculo da lâmpada, era sem dúvida o de um ancião, mas com algo inquebrável e ainda imortal. Leu com lenta precisão duas versões de um mesmo capítulo épico. Na primeira, um exército marcha para uma batalha através de uma montanha deserta; o horror das pedras e da sombra leva-o a menosprezar a vida e consegue facilmente a vitória; na segunda, o mesmo exército atravessa um palácio onde há uma festa; resplandecente batalha se lhe afigura uma continuação da festa e obtém a vitória.   Eu escutava com apropriada veneração essas velhas ficções, talvez menos admiráveis que o fato de terem sido ideadas pelo meu sangue e que um homem de um império remoto as restituísse a mim, no curso de uma desesperada aventura, numa ilha ocidental. Lembro-me das palavras finais, repetidas em cada versão como um mandamento secreto: Assim como combateram os heróis, tranquilo o admirável coração, violenta a espada, resignados a matar e morrer.
A partir desse instante, senti ao meu redor e no meu pobre corpo uma invisível, intangível pululação. Não a pululação dos divergentes, paralelos e finalmente coalescentes exércitos, porém uma agitação mais inacessível, mais íntima e que eles de certo modo prefiguravam. Stephen Albert continuou:
_ Não acredito que seu ilustre antepassado brincasse ociosamente com as variações. Não julgo verosímil que sacrificasse treze anos à infinita execução de um experimento retórico. Em seu país, o romance é um género subalterno; naquele tempo era um género desprezível. Ts´sui Pen foi um romancista genial, mas também foi um homem de letras que sem dúvida não se considerou um simples romancista. O testemunho de seus contemporâneos proclama – e fartamente o confirma sua vida – suas inclinações metafísicas, místicas. A controvérsia filosófica usurpa boa parte do romance. Sei que de todos os problemas, nenhum o inquietou e ocupou como o abismal problema do tempo. Pois bem, esse é o único problema que não figura nas páginas do jardim. Nem sequer emprega a palavra que significa tempo. Como explica o senhor essa voluntária omissão?
Propus várias soluções: todas, insuficientes. Discutimo-las; por fim, Stephen Albert disse-me:
_ Numa charada cujo tema é o xadrez, qual seria a única palavra proibida? – Pensei um momento e repliquei:
_ A palavra xadrez.
_ Exactamente – falou Albert. _ O jardim de caminhos que se bifurcam é uma enorme charada, ou parábola, cujo tema é o tempo; essa causa recôndita proíbe-lhe a menção desse nome. Omitir sempre uma palavra, recorrer a metáforas ineptas e a perífrases evidentes, é quiçá o modo mais enfático de indicá-la. É o modo tortuoso que preferiu, em cada um dos meandros de seu infatigável romance, o oblíquo Ts´sui Pen. Confrontei centenas de manuscritos, corrigi erros que a negligência dos copistas introduziu, conjecturei o plano desse caos, restabeleci, acreditei restabelecer, a ordem primordial, traduzi a obra toda: consta-me que não usa uma só vez a palavra tempo. A explicação é óbvia: O jardim de caminhos que se bifurcam é uma imagem incompleta, mas não falsa, do universo tal como o concebia Ts´sui Pen. Diferentemente de Newton e de Schopenhauer, seu antepassado não acreditava num tempo uniforme, absoluto. Acreditava em infinitas séries de tempos, numa rede crescente e vertiginosa de tempos divergentes, convergentes e paralelos. Essa trama de tempos que se aproximam, se bifurcam, se cortam ou que secularmente se ignoram, abrange todas as possibilidades. Não existimos na maioria desses tempos; nalguns existe o senhor e não eu. Noutros, eu, não o senhor; noutros, os dois. Neste, que um acaso favorável me surpreende, o senhor chegou a minha casa; noutro, o senhor ao atravessar o jardim, encontrou-me morto; noutro, digo estas mesmas palavras, mas sou um erro, um fantasma.
_ Em todos – articulei com um certo temor – agradeço e venero sua recriação do jardim de Ts´ui Pen.
_ Não em todos _ murmurou com um sorriso. _ O tempo se bifurca perpetuamente para inumeráveis futuros. Num deles sou seu inimigo.
Voltei a sentir aquela pululação de que falei. Pareceu-me que o húmido jardim que rodeava a casa estava saturado até o infinito de pessoas invisíveis. Essas pessoas eram Albert e eu, secretos, atarefados e multiformes em outras dimensões de tempo. Alcei os olhos e o ténue pesadelo se dissipou. No amarelo e negro jardim havia um só homem; mas esse homem era forte como uma estátua, mas esse homem avançava pelo caminho e era o Cap. Richard Madden.
_ O futuro já existe – respondi _ mas eu sou seu amigo. Posso examinar de novo a carta?
Albert levantou-se. Alto, abriu a gávea da alta escrivaninha; deu-me por um momento as costas. Eu havia preparado o revólver. Disparei com o maior cuidado: Albert se desaprumou, sem uma queixa, imediatamente. Juro que sua morte foi instantânea: uma fulminação.
O resto é irreal, insignificante. Madden irrompeu, prendeu-me. Fui condenado à forca. Abominavelmente venci: comuniquei a Berlim o nome secreto da cidade que deviam atacar. Ontem a bombardearam; li a notícia nos mesmos jornais em que apresentaram à Inglaterra o enigma do sábio sinólogo Stephen Albert, que morrera assassinado por um desconhecido, Yu Tsun. O chefe decifrou esse enigma. Sabe que meu problema era indicar (através dos estrépito da guerra) a cidade que se chama Albert e que não achei outro meio a não ser matar uma pessoa com esse nome. Não sabe (ninguém pode saber) minha imensa contrição e cansaço.



* Hipótese odiosa e ridícula. O espião prussiano Hans Rabener, alias Viktor Runeberg,  agrediu com uma pistola automática o portador da ordem de prisão, Cap. Richard Madden. Este, em defesa própria, causou-lhe ferimentos que determinaram sua morte (Nota do Editor).